“Maria, Mulher peregrina que caminha guiada pelo Espírito
Santo”.
Maria ícone da Igreja peregrina
Ir. Maria Ko Ha Fong
Na narrativa dos evangelhos uma das caraterísticas de Jesus nitidamente
percetíveis é o seu estar «a caminho». Ele nasce na viagem, como recém-nascido
tem de viajar para se refugiar num país estrangeiro, durante a sua vida pública
desloca-se a um ritmo permanente, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, dos
lugares desertos para as praças, de casa para a sinagoga, da estrada para o campo,
da beira-mar para a montanha: quando se aproxima «a hora de passar deste mundo
para o Pai» (Jo 13,1), toma a firme
decisão de se pôr a caminho de Jerusalém» (Lc
9,51). Por fim, morre fora de casa, a terminar uma via crucis. Ele mesmo é «o caminho» (Jo 14,6). Com um «segue-Me» envolve
muitos a pôr-se a caminho juntamente com Ele: mesmo depois da sua morte, os
seus discípulos são conhecidos como «os da via» (At 9,2). Pedro captou bem a identidade do Mestre quando o anuncia
com esta frase sintética: «Deus ungiu com o Espírito Santo e com o poder a
Jesus de Nazaré, o qual andou de lugar em lugar, fazendo o bem e curando todos»
(At 10,38). A imagem que fascinou os
primeiros convertidos ao cristianismo é a de Jesus que caminha conduzido pelo
Espírito e fazendo bem por onde passa.
A Bíblia é
um livro cheio de caminhos e de viagens, a história entre Deus e a humanidade é
um entrelaçado dinâmico entre sair e chegar, ir e vir, partir e voltar, entre
êxodo e advento. O caminhar de Maria insere-se neste movimento, neste sistema
de encontro divino-humano, sempre aberto ao imprevisto, à surpresa e à
novidade, mas sempre guiado pelo vento do Espírito. Efetivamente, a narrativa
evangélica sobre Maria começa na pequena localidade de Nazaré e termina na
cidade de Jerusalém. Ambos os lugares são como que uma fresta onde a terra se
abre para o céu, como trampolim de lançamento onde a casa abre de par em par a
porta para um caminho. Em ambos irrompe o «poder do Altíssimo». Na primeira o
Espírito desce silenciosamente como «sombra que cobre» (Lc 1,35), na segunda o mesmo Espírito torna-se presente através de
um «ruído semelhante ao de forte rajada de vento» (At 2,1). Há uma espécie de «inclusão pneumatológica» maravilhosa.
De um até ao outro lugar desenrola-se a grande aventura não só de Maria, mas de
toda a humanidade que caminha ao encontro de um Deus surpreendente.
Sabemos que
nos evangelhos as passagens explícitas concernentes à mãe de Jesus são poucas,
e as suas palavras reportadas são ainda mais escassas, apenas seis: à exceção
do cântico do Magnificat, as suas
palavras limitam-se a uma frase. No entanto, são textos de extraordinária
densidade e situados em pontos cardeais da história da salvação. A imagem
bíblica de Maria, para mim que sou chinesa, tem algo de semelhante a uma
pintura na seda, com estas caraterísticas típicas: poucas pinceladas, muito espaço
em branco, cores ténues, contornos não totalmente definidos, sujeitos simples e
despretensiosos, atmosfera de silêncio sagrado. As poucas pinceladas caem
harmoniosamente em lugares apropriados e jorram energias; graças a elas, também
o espaço em branco se torna denso de significado. O todo convida a transcender,
a lançar-se para o infinito, a sondar o mistério, a fazer experiência do além, a
espraiar-se no belo. As poucas passagens evangélicas sobre Maria formam, com o
muito espaço em branco que as circunda, um todo harmonioso, dinâmico,
fascinante. De Maria numquam satis: não só o falar de Maria é
inexaurível, mas também a contemplação dos poucos traços evangélicos sobre
Maria nunca tem fim. As reflexões que aqui proponho são fruto de uma das
infinitas contemplações desta belíssima obra-prima do Senhor, uma contemplação
da qual transparece um pouco do olhar feminino e asiático, e muito, como
espero, do coração salesiano. Estão articulados em sete pontos.
1. Do
«quomodo fiet» ao «fiat»
Contemplemos
Maria no momento em que de improviso recebe o anúncio do anjo. À mensagem
surpreendente de Gabriel a resposta de Maria não surge de modo instantâneo e
irrefletido. A sua primeira reação é de perturbação, típica de quem tem
consciência de se encontrar perante algo que o transcende infinitamente, uma
novidade inesperada cujo sentido não consegue captar logo. Trata-se de uma
dúvida proveniente não da incredulidade, mas da estupefação perante a
desproporção entre a grandeza da proposta e a limitação efetiva da capacidade
de realização. É a atitude da pessoa humilde e reflexiva, isto é, de quem está
consciente da sua pequenez e se abeira do mistério com timidez e discrição,
atento a penetrar-lhe o sentido. É o sentimento do pobre que sabe deslumbrar-se
perante os dons gratuitos.
A segunda
reação de Maria é uma objeção. Maria pede luz: Quomodo fiet istud? («Como
será isto?») e manifesta o dilema do seu querer consentir, mas não saber como. Ela pergunta a Deus o que deverá
fazer para estar em condições de obedecer. O espírito de Maria é como o do
salmista quando suplica a Deus dizendo: «Faz-me compreender o caminho dos teus
preceitos para meditar nas tuas maravilhas» (Sal 119,27).
Depois de o
anjo lhe ter assegurado que é o Espírito que ultrapassa a sua pequenez,
potenciando-a e embelezando-a, Maria aceita com plena disponibilidade, passando
assim do quomodo fiet, «como será isso», ao fiat, ao «faça-se». O
fiat de Maria, tal como o que Jesus
nos ensinou no Pai-nosso - «Seja
feita a vossa vontade, assim na terra como no céu» (Mt 6,10) - é um abandono confiante e um desejo alegre de fazer a
vontade de Deus. Com o seu fiat, ela
recapitula em si toda a multidão dos obedientes na fé do Antigo Testamento e
inaugura o novo povo, pronto a escutar a voz de Deus que agora, na plenitude
dos tempos, fala por meio do seu Filho.
A dinâmica
do caminho interior de Maria resulta ainda mais clara se tomarmos em
consideração o confronto intencional feito por Lucas entre duas anunciações: a
Zacarias (1,5-22) e a Maria (1,26-38). Zacarias, ancião e estimado, sacerdote,
homem justo, representante ideal da religiosidade veterotestamentária, é surpreendido
pela aparição do anjo em Jerusalém, no templo, durante o culto. Homem santo,
lugar santo, tempo santo: tudo sublinha a sacralidade e a solenidade do evento.
Maria, ao contrário, uma desconhecida donzela de Nazaré, cidade desprezada, da
qual nada de bom poderia vir (cf Jo
1,46), surpreende-se com a visita do anjo na quotidianidade simples e
doméstica. Mas Deus inverte as posições. O anjo entra «em sua casa»: é Maria,
na realidade, o templo do Altíssimo. Ela «encontrou graça diante de Deus»,
recebe gratuitamente o dom divino, não por causa da sua observância da lei ou
em resposta à sua oração de petição, como acontece no caso de Zacarias. Também
a conclusão das narrativas é diferente: Zacarias fecha-se no seu mutismo,
isolado, porque quem não toma parte de todo o coração no desígnio de Deus e não
se deixa envolver de forma apaixonada nem sequer pode falar dele. Ao contrário,
Maria acredita, abre-se e torna-se colaboradora de Deus na salvação do mundo.
Na tradição iconográfica, Maria é com frequência representada como a platytera (do grego mais ampla), a
pequenez que hospeda o infinito. Aquele que os céus não podem conter decide habitar
no seu seio. É o Espírito que a torna “ampla”, cobrindo-a com a sua sombra,
enchendo-a de graça, carregando-a de dinamismo e de paixão. Isso vê-se pelo
facto de ao episódio da anunciação se ligar em linha de continuidade o da
visitação. À expressão: «o anjo retirou-se de junto dela», segue-se
imediatamente: Maria «pôs-se a caminho» (Lc 1,38-39).
2. «Caminhar
apressadamente» e «guardar tudo no coração»
A pressa do
caminho para Ain Karim, tal como depois a solicitude nas bodas de Caná, mostram
o estilo ativo, empreendedor, criativo, resoluto de Maria. O seu ir com pressa
é imagem da Igreja missionária que, logo depois do Pentecostes, repleta do
Espírito Santo, se põe a caminho para difundir a boa nova até aos últimos
confins da terra. Paulo conhece bem esta pressa: «É o amor de Cristo que nos
impele» (2Cor 5,14).
Maria não
olha a distâncias, a possíveis perigos, não calcula o tempo, não mede a fadiga.
O ardor do coração dá-lhe asas nos pés. Sente-se impelida por aquele Deus que
leva dentro. O seu caminhar não é só movimento exterior: é um andar
permanecendo no Senhor, um partir habitando n’Ele, um viajar levando-O dentro
de si. É a força interior que move, orienta, envolve e dá sentido à ação
exterior; é o silêncio que faz amadurecer a palavra. Ela une a contemplação no
encontro com o mistério à ação concreta na experiência do serviço; põe em harmonia
o maior entusiasmo por Deus e o maior realismo pelo mundo e pela história.
À solicitude
e à laboriosidade exterior corresponde uma intensa atividade interior. Maria
«guarda tudo no seu coração e medita» (Lc
2,19.51). Lucas quis sublinhar a atitude reflexiva e sábia de Maria face ao
mistério repetindo esta frase. É uma expressão que abre profundas frestas sobre
a vida interior de Maria. Ela, Virgem sábia, Virgem à escuta, é uma mulher de
coração grande, capaz de guardar as «grandes coisas» nela realizadas por Deus
na história, capaz de fazer memória das maravilhas de Deus, capaz de articular
dentro de si o passado com o presente, transformando tudo em semente de futuro.
Ela não compreende logo tudo, mas guarda tudo no seu coração, abre-se ao
mistério deixando-se envolver e respeitando os ritmos da revelação histórica de
Deus.
Jesus
ensinará esta atitude reflexiva de Maria também aos seus discípulos: «Disse-vos
isto para que, quando acontecer, vos recordei que vo-lo disse» (Jo 16,14). «A semente caída na terra boa
são aqueles que, depois de ter escutado a palavra com coração bom e perfeito, a
guardam e produzem fruto com a sua perseverança» (Lc 8,15).
Os
discípulos de Jesus devem aprender de Maria, Mestra sapiente, o segredo da
unificação vital entre interioridade e atividade, entre ser e fazer, entre crer
e agir, entre oração e trabalho, entre memória e criatividade, entre
concentração e difusão da palavra de Deus, entre «guardar tudo no coração» e
caminhar apressadamente», entre o acolher o dom de Deus e o fazer-se dom para
os outros.
3. «Ver um sinal» e «ser sinal»
Maria parte
de Nazaré e põe-se a caminho na sequência de um «sinal» recebido do anjo:
«Também a tua parente Isabel concebeu um filho na sua velhice» (Lc 1,36). Na modesta casa do sacerdote
Zacarias, a anciã Isabel espera o filho dom de uma graça surpreendente. Este
facto deve ser para Maria uma prova do poder de Deus para quem «nada é
impossível» (1,37).
Quando Sara,
mulher de Abraão, ria incrédula ao pensamento de poder ainda ser mãe na sua
velhice, o Senhor fez-lhe esta pergunta: «Haverá alguma coisa que seja
impossível para o Senhor?» (Gn
18,14). Isaías convida o povo desalentado e perturbado pelo sofrimento a confiar
naquele que tudo pode: «Não, a mão do Senhor não é curta para salvar, nem o seu
ouvido demasiado surdo para ouvir» (Is
59,1).
Maria
caminha em direção à montanha animada pela confiança em Deus. Como depois dirá
na explosão de alegria do Magnificat,
o Senhor é para ela «Salvador», «o Omnipotente», um Deus que «se recorda da sua
misericórdia» e a mantém «de geração em geração sobre aqueles que o temem» (Lc 1,47.49-50).
A confiança
de Maria sai reforçada pelo «sinal» que Deus lhe ofereceu, mas, na realidade,
ela mesma é um sinal de Deus dado à humanidade, «um sinal de esperança e de
consolação» (Lumen Gentium 68). Maria,
com efeito, assinala a aurora que anuncia o nascer do sol, assinala o irromper
da salvação na história, assinala «a plenitude do tempo» (Gal 4,4). Enquanto Isaac, o menino de Sara, e João, o menino de
Isabel, trazem a mensagem de que Deus tudo pode, o menino de Maria é o Deus que
tudo pode, o Deus omnipotente feito homem frágil e escondido.
No caminho
de fé de Maria há uma circularidade entre o descobrir o sinal de Deus nos
outros e ser o sinal de Deus para os outros. Trata-se da maravilhosa
solidariedade entre os crentes. O encontro de Maria e de Isabel é revelador no
esplendor da sua beleza.
Maria e
Isabel: duas mulheres voltadas para o futuro do seu seio, duas mulheres que
guardam dentro de si um mistério inefável, um milagre estupendo. A consciência
de ser objeto de particular predileção por parte de Deus une-as, a missão comum
de colaborar com Deus num projeto grandioso entusiasma-as e fá-las explodir em
bênção e em cântico de louvor, a experiência da maternidade prodigiosa torna-as
solidárias. O prodígio de Deus em Isabel é para Maria um «sinal» que a ajuda a
pronunciar o seu fiat; o prodígio de
Deus em Maria é «sinal» para Isabel, um sinal que suscita nela uma confissão de
fé. Assim as duas mulheres são, uma para a outra, lugar em que descobrem Deus,
epifania da sua grandeza e motivo para O louvar e agradecer.
Ao
reconhecer-se reciprocamente como «sinal» de Deus, a sua comunicação, densa de
intuição e de entendimento profundo, permeada de respeito pelo mistério,
torna-se bênção, torna-se cântico e poesia. O confronto recíproco na fé faz
brotar a profecia recíproca, animada pela força do Espírito. Juntamente, ambas,
tornam-se sinal da solidariedade de Deus com toda a humanidade.
4. Do fiat ao magnificat
Enquanto
Maria percorre apressadamente as vias tortuosas da montanha, dentro dela
desencadeia-se um itinerário interior de fé que vai da adesão dócil do fiat à explosão alegre do Magnificat, do ser visitada por Deus ao
ser visita de Deus para os outros.
Subindo a
montanha, Maria sente que não está só. O Filho de Deus está presente, escondido
nela. A saudação do anjo em Nazaré, «o Senhor está contigo», que Maria tivera
dificuldade em compreender, agora torna-se experiência real e convicção
profunda. Maria, Mãe do Deus-conosco,
é agora a arca da nova aliança, a nova morada de Deus, nova transparência da
presença divina entre os homens, novo motivo de alegria para todos.
Com o seu
caminhar pelas vias incómodas para ir ter com o outro a sua casa, Maria
inaugura o estilo de Deus, o estilo de «sair», o estilo de serviço, de
rebaixamento, de solidariedade para com quem tem necessidade. Nela o Deus
incarnado faz-se o Deus que entra na trama humana e se torna presente também na
esfera do quotidiano. A salvação adquire tonalidade doméstica. «Hoje quero
ficar em tua casa», «Hoje a salvação entrou nesta casa» (Lc 19, 5.9): isto que Jesus dirá mais tarde no encontro com Zaqueu
é de algum modo realidade antecipada por meio de Maria.
Maria leva
alegria e esperança. Da Galileia à Judeia faz o mesmo percurso que mais tarde
Jesus fará. Caminhando apressadamente pelos montes, ela evoca o célebre texto
profético: «Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que apregoa a
boa-nova…» (Is 52,7). A boa-nova
levada por Maria transborda alegria contagiante, faz exultar um menino no seio
materno, torna felizes dois anciãos. «Jovens e velhos partilharão do seu
júbilo. Converterei o seu pranto em exultação, hei de consolá-los e aliviá-los
das suas penas» (Jer 31,13). Os
meninos que nascem e os anciãos que chegam à plenitude da sua vida encontram-se
e unem-se em exultação, louvando o mesmo Deus «amante da vida» (Sab 113,9).
Ao longo de
toda a sua vida, Maria continua a multiplicar e a difundir por toda a parte a
alegria pura de que está inundada, aquela alegria recebida da saudação do anjo
«Alegra-te, Maia» e tornada mais interior e profunda pelo seu fiat.
No
nascimento de Jesus esta alegria estende-se aos pastores de Belém através do
anúncio do anjo: «Anuncio-vos uma grande alegria, que será para todo o povo» (Lc 2,10). Levando Jesus ao templo, faz
ainda estremecer de alegria o velho Simeão e a profetiza Ana. Em Caná, a
alegria não vem a faltar no banquete das bodas graças à intercessão de Maria
junto de seu Filho. A Maria, portadora da Boa Nova e mãe do Deus da alegria,
poder-se-ia aplicar a palavra do salmista: «Onde passas, brota a abundância
[…], tudo canta e grita de alegria» (Sal
65, 12-14).
Do fiat ao
magnificat torna-se, portanto, itinerário exemplar de todo o cristão que
faz a sua peregrinação da fé passando da adesão inicial ao projeto de Deus ao
pleno gozo da beleza deste projeto, através de uma gradual «saída»: o serviço,
a gratuidade do quotidiano, o ir com solicitude ao encontro de quem precisa, o
encontro de amizade, o esforço missionário de levar Jesus a casa dos outros, o
anunciar a boa nova com alegria suscitando alegria de salvação na juventude que
se abre à vida.
5. «Envolvê-lo
em panos” e «buscá-lo com ânsia»
Na narrativa
do nascimento de Jesus, Lucas refere o gesto delicado de Maria: «Deu à luz o
seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura» (Lc 2,7). É um gesto simples que exprime
todo o afeto materno, terno e respeitoso de Maria para com este menino que é
filho de Deus e filho seu. O anjo que anunciará a boa notícia do nascimento do
menino aos pastores dar-lhes-á isto como sinal: «encontrareis um menino envolto
em panos e deitado numa manjedoura (Lc
2,12). Vinte séculos passaram e ainda hoje nas nossas cenas natalícias o menino
se apresenta com este sinal do amor da mãe.
Em Belém,
Maria juntamente com José encontra-se envolvida neste mistério, desde sempre
escondido na mente de Deus e agora tornado realidade diante dos seus olhos: «E
o Verbo fez-se homem e veio habitar conosco» (Jo 1,14). Maria e José são as primeiras testemunhas deste
nascimento, ocorrido em condições humildes e pobres, primeiro passo daquele
«aniquilamento» (cf Fil 2,5-8) que o
Filho de Deus livremente escolhe para a salvação de toda a humanidade. E este
menino é confiado ao seu cuidado e educação. O amor terno da mãe, expresso no
momento do nascimento, acompanhará o filho em todas as fases da vida.
O longo
período da vida escondida em Nazaré, durante o qual Jesus se prepara para a sua
missão messiânica, é resumido por Lucas em poucas palavras. Ele narra um único
episódio da vida de Jesus adolescente: o da Páscoa em Jerusalém, quando Jesus
tinha doze anos. A narrativa é introduzida por dois versículos que sublinham a
ideia do crescimento de Jesus: «O menino crescia e robustecia-se, enchendo-se
de sabedoria, e a graça de Deus estava com Ele» (Lc 2,40). «Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça,
diante de Deus e dos homens» (Lc
2,52). A viagem à cidade santa quando Jesus tinha doze anos marca uma etapa do
crescimento de Jesus: é a antecipação de outra viagem a Jerusalém, que
culminará na sua Páscoa.
O episódio
assinala também o crescimento da mãe. Reencontrado Jesus no templo ao fim de
três dias, Maria pergunta-lhe: «Filho, porque procedeste assim conosco? Olha
que teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura!» (Lc 2,48). No «porque» de Maria está o resumo de tantos “porque” da
humanidade perante o Deus misterioso: a sua ânsia exprime a angústia de tantas
pessoas que penosamente buscam a Deus. À pergunta da mãe, Jesus responde com
duas perguntas: «Porque me procuráveis? Não sabíeis que devia estar em casa de
meu Pai?» (Lc 2,49). Ele tem um
«deve» no desígnio do Pai: com o crescimento em idade e em sabedoria cresce
sobretudo na consciência da sua missão. Também Maria deve crescer no
acolhimento da identidade de Jesus – este filho que ela envolveu em panos ao
nascer não é só seu filho – e cresce na consciência de ser também ela
depositária do mistério de Deus; sabia-o desde o momento do anúncio do anjo,
mas agora tudo aparece mais vivo e real e, ao mesmo tempo, mais duro e mais
incompreensível. Ao lado de seu Filho, também Maria tem um «deve» relativamente
às coisas do Pai. Mãe e Filho crescem juntamente no apoio recíproco para
realizar o desígnio do Pai.
6. Do fiat ao facite
Maria tornou-se
Mãe de Deus porque «acreditou» no cumprimento das palavras do Senhor» (Lc 1,45): é a interpretação do fiat de Maria feita por Isabel, sob a
inspiração do Espírito Santo. Faz-lhe eco Agostinho quando diz: Maria, cheia de
fé, concebeu Cristo no coração antes de O conceber no seio». À plenitude de
graça por parte de Deus corresponde a plenitude de fé por parte de Maria.
Completamente
entregue a Deus, empenhada em avançar constantemente na «peregrinação da fé»,
Maria sintonizou lenta e profundamente com Deus. Pela sua viva fé, chega a um profundo
entendimento com Ele, a uma sintonização de todo o seu ser com a esfera divina,
consegue ter uma profunda intuição do pensamento de Deus, saber discernir
espontaneamente a sua vontade, sentir palpitar dentro de si o coração de Deus.
A Epístola aos Hebreus, elogiando a fé dos antepassados de Israel, diz de
Moisés que viveu «como se visse o invisível» (Heb 11,27). Assim Paulo, tendo
atingido um grau de união com Cristo que podia dizer «já não sou eu que vivo,
mas é Cristo que vive em mim» (Gal
2,20), afirma sem retórica e sem pretensão: «Nós temos o pensamento de Cristo» (1Cor 2,16). Tudo isto pode ser dito de
Maria. Em Caná da Galileia encontramo-la assim, simples, discreta, confiante ao
lado do seu Filho, segura de ser atendida porque intimamente sintonizada com
Ele.
Em Caná,
Maria assume um papel profético. É «porta-voz da vontade de Deus, indicadora
daquelas exigências que devem ser satisfeitas, a fim de que o poder salvífico
do Messias possa manifestar-se» (Redemptoris
Mater 12). As duas frases pronunciadas por Maria em Caná: «Não têm vinho!»
(Jo 2,3) e «Fazei o que Ele vos
disser» (Jo 2,5) realçam esta
dimensão. Maria lê em profundidade a história humana, identifica os problemas
ainda ocultos, recolhe os gemidos ainda não verbalizados, vislumbra o
sofrimento ainda sem nome. Ela descobre o nó essencial da dificuldade e
apresenta-o ao seu Filho, o único que pode desatá-lo (É a imagem que tanto
agrada ao Papa Francisco: Maria que desata os nós, pode aqui encontrar uma
ligação bíblica). E entretanto prepara os servos para o acolhimento da ajuda
divina com uma indicação segura.
«Fazei o que
Ele vos disser» é uma das poucas expressões pronunciadas por Maria no
Evangelho, a única dirigida aos homens, que, por isso, com razão, é considerada
«o mandamento da Virgem». É também a última palavra registada no Evangelho,
como que «testamento espiritual». Depois disto Maria não voltará a falar; disse
o essencial abrindo os corações a Jesus, só Ele tem «palavras de vida eterna» (Jo 6,68). Nesta expressão de Maria
percebem-se os ecos da fórmula da aliança do Sinai. Como conclusão da aliança,
o povo promete: «Faremos tudo o que o Senhor disse» (Ex 19,8; 24,3.7; Dt
5,27). Maria não só personifica Israel obediente à aliança, mas é também aquela
que induz à obediência, agora não já à aliança, mas a Jesus, em quem tem início
uma nova aliança e um novo povo. Isto aparece com maior evidência se lermos
esta frase de Maria em paralelo com as últimas palavras de Jesus Ressuscitado
no Evangelho de Mateus: «Fazei discípulos de todos os povos […] ensinando-os a
cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (Mt
28,19).
Maria,
portanto, leva a seguir Jesus, a obedecer à sua palavra e a considerá-l’O como
referência absoluta. Maria ajuda a formar a comunidade nova de Jesus, antes,
ajuda Jesus a fazer amigos no sentido que Ele mesmo disse: «Vós sois meus
amigos, se fizerdes o que Eu vos mando» (Jo
15,14).
O «Fazei o
que Ele vos disser» pronunciado por Maria não é um convite teórico, abstrato,
mas uma exortação amadurecida pela experiência pessoal. A palavra só chega ao
coração e à vida do interlocutor se brotar do coração e da vida de quem fala.
Maria, especialista em confiar-se à palavra de Deus, pode agora ajudar outros a
fazer o mesmo. A sua fé é contagiante: o fiat
que Ela viveu em profundidade torna-se um facite
convincente dirigido a outros.
Do fiat ao facite: só um profundo entendimento com Deus e uma sábia
compreensão da realidade do mundo podem dar eficácia às nossas palavras e
ações. O facite com que ajudamos os
outros, em particular os jovens, deve brotar sempre do nosso fiat pessoal de adesão a Deus.
7. De «Eis que conceberás um filho» a «Eis o teu filho»
Maria, a Theotókos,
a Mãe de Deus, é a epifania de um dos mistérios, dos maiores paradoxos do
cristianismo, das surpresas de amor mais desconcertantes de Deus feitas à
humanidade. A experiência única e prodigiosa de gerar na carne o Autor da vida
encheu de assombro Maria. O seu Magnificat
é, de facto, todo ele uma exclamação de maravilha e de júbilo: «Grandes coisas
fez em mim o Omnipotente». Isabel, envolvida na sua mesma estupefação,
chama-lhe «mãe do meu Senhor». A Igreja reconhece neste mistério o primeiro e
fundamental dogma sobre Maria e ao longo dos séculos contempla-o na liturgia.
Um antigo responsório do Natal exclama: «Aquele que os céus não podem conter,
encerrou-Se nas tuas entranhas, feito homem». Nem o raciocínio concetual, nem
os hinos e os poemas, nem os sons e música, nem as cores e a arte conseguem
exprimir adequadamente a grandeza deste mistério.
O ser mãe
para Maria não é, porém, uma identidade estática que se adquire de uma vez para
sempre. Ao longo da sua «peregrinação da fé» fez um caminho de crescimento e de
amadurecimento na sua maternidade vivendo toda uma gama de sentimentos
maternos. É a espera silenciosa no contemplar o lento revelar-se do segredo
dentro de si, a alegria interior no nascimento e o amor e ternura para com o
filho recém-nascido, a satisfação e a ufania em apresentá-lo aos pastores e aos
magos. É a dor da fuga e do exílio para proteger e salvar a vida daquele que é
a Vida do mundo. É a doçura da intimidade nos anos de Nazaré. É depois a
experiência difícil e desconcertante da perda de Jesus no templo aos doze anos.
Também no decurso da vida pública de Jesus a união da mãe com o filho continua
a desenvolver-se e a aprofundar-se. Com sobriedade e discrição, Maria está
presente «não como uma mãe ciosamente voltada só para o próprio Filho divino,
mas sim como aquela Mulher que, com a sua ação, favoreceu a fé da comunidade
apostólica em Cristo e cuja função materna se dilatou, vindo a assumir no
Calvário dimensões universais» (Marialis
cultus 37).
Tal como a «peregrinação
da fé» culmina para Maria no evento pascal do Filho, assim também o seu caminho
de maternidade. João Paulo II fala de uma «nova maternidade de Maria», que é
fruto do «novo amor», que nela amadureceu definitivamente aos pés da cruz,
mediante a sua participação no amor redentor do Filho» (Redemptoris Mater 23). Já Agostinho dela falava de modo análogo
refletindo sobre Maria: Mãe não só da Cabeça, mas também dos membros do corpo
místico de Jesus gerado da sua morte redentora. Elevado sobre a cruz, o Filho
de Maria revela-se «o primogénito de muitos irmãos» (Rm 8,29); à sua volta reúnem-se em unidade todos «os filhos
dispersos de Deus» (Jo 11,52), e
Maria descobre-se mãe de uma multidão de filhos. É Jesus que lhos confia. Em
Nazaré, Maria tinha iniciado o seu caminho de maternidade aceitando o projeto
misterioso de Deus: «Conceberás um Filho»; agora é este Filho que lhe propõe
uma nova maternidade universal. Em Caná, Maria tinha intervindo fazendo de
mediadora entre o seu Filho e os homens; agora é o seu Filho que faz de
mediador entre ela e os homens dizendo-lhe: «Mulher, eis o teu filho!». A
narrativa de João termina assim: «E desde aquele momento, o discípulo recebeu-a
em sua casa» (Jo 19,27). Desde aquele
momento, enquanto a humanidade redimida acolhe a Mãe, Maria acolhe cada filho
entregue pessoalmente pelo seu Filho e introdu-lo no seu coração materno, para
sempre.
Logo após a
ascensão de Jesus, exerce a sua maternidade realizando a vontade de seu Filho.
Lucas oferece-nos o belíssimo texto no início dos Atos: depois da ascensão de Jesus os onze apóstolos regressaram a
Jerusalém à espera do Espírito prometido e «todos unidos pelo mesmo sentimento,
entregavam-se assiduamente à oração, com algumas mulheres, entre as quais
Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos de Jesus (At 1,14). Lucas quer
realçar a continuidade entre o Jesus histórico, nascido por obra do Espírito
com a colaboração de Maria, e o nascimento da Igreja por obra do mesmo Espírito
e com a mesma colaboração de Maria. Aquela que concebeu o Filho por obra do
Espírito Santo “concebe” agora o corpo místico de seu Filho no acolhimento do Espírito.
A Mãe, que iniciou Jesus no seu caminho terreno, acompanha agora a Igreja no
seu peregrinar no mundo e na história.
Conclusão
Associar o “peregrinar”
de Maria à nossa experiência salesiana é algo espontâneo. Na preparação desta
proposta de reflexão vinham-me continuamente à memória evocações da vida de Dom
Bosco, de Madre Mazzarello e de tantos irmãos e irmãs da Família Salesiana. A
sintonia entre o espírito de Maria e o espírito salesiano é forte e não pode
ser diversamente, dado que Maria é a Mãe e Mestra da Família Salesiana. Não
tento aqui ilustrar o confronto com receio de prejudicar a sua beleza
harmónica, e espero que as palavras ditas não invadam demasiado aquele espaço em
branco, espaço carregado de potencialidades de estupefação, de descoberta, de
entusiasmo e de renovada paixão.
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